Uma poética em que ecoam
os «Teatros do Tempo»

Contra Todas as Evidências<br>– Poemas Reunidos II<br>de Manuel Gusmão

Domingos Lobo

O 25 de Abril é um dia e são dias, meses, anos. É daquelas datas que se constelam, que estão antes de hoje, que hoje ecoam ainda, e que tremeluzirão no depois de hoje como a memória de uma outra possibilidade no conflito dos possíveis reais. Palavras de Manuel Gusmão, um dos maiores poetas portugueses contemporâneos, na badana deste segundo volume de Contra Todas as Evidências, colectâneas nas quais o poeta nos reenvia, conjuntamente, o grosso substantivo da sua vasta e referencial obra poética.

Este Poemas Reunidos II, junta três dos seus mais significativos títulos: Teatros do Tempo; Os Dias Levantados e Migrações do Fogo. Três livros que não se encontrarão, por acaso, neste volume. Eles falam, de uma ou outra forma, da constelar memória dos dias de Abril e do seu mais perene, fecundo lastro; da interrogação do poeta face aos possíveis reais que Abril transportou no seu bojo de astros, dias de fúria e gritos, de júbilo e de sonhos; da transfiguração do real em outro mais largo, colectivo e possível: Este é o som e a fúria/do sentido. Nós o inventamos/e nisso renascemos.

Há na poesia de Manuel Gusmão essa capacidade de júbilo e de fúria, também de recolhimento, de inventariação crítica do real, fazendo-o no entanto com subtil sageza e modelar argúcia face aos axiomas dominantes. Carina Infante do Carmo, na apresentação deste livro na Festa do Avante!, referiu com acerto e justiça: o autor pertence à linhagem de poetas/críticos como Fernando Pessoa ou Jorge de Sena. Este livro, reunindo três grandes títulos de Gusmão, faz sentido, suscita um diálogo interno mais próximo e abrangente entre estes textos. Há neles o sentido da História e da participação na História, o conhecimento, a evolução, o trazer à memória factos passados: trazem ao de cima a tradição revolucionária, a memória daqueles que não deixaram de pensar e transformar o mundo. Poesia muito reflexiva, que pensa a linguagem e a imaginação humana e inclui nele os sentidos – os que transportamos e atribuímos ao mundo. Manuel Gusmão, concluiu Carina Infante do Carmo, citando Urbano Tavares Rodrigues, é um Poeta da Memória, do Amor e do Futuro.

A estrutura narrativa da poesia de Gusmão, nomeadamente em Teatros do Tempo (estrutura que o poeta sabe ilidir pontualmente), carrega a transparência de um tempo em contínuo, tanto nas virtualidades da ocultação como na essência das revelações que esse fluxo discursivo, com transparente inquirição, vai extraindo das palavras: há uma pequena noite que a manhã guarda/junto ao seu lento flanco ondulante. O poeta gera, desse modo, nas esparsas referências autobiográficas, um fluxo de figurações, entre o real e o oculto, que são marca de água da sua arte poética. E o cinema, as técnicas da montagem, sobreleva esta escrita, percorre a sua inventiva verbal, os implícitos imaginários que lhe subjaz, nas sequências, na transfiguração dos elementos sincrónicos que a constituem; no modo de olhar o mundo e sobre ele, afirmativamente, reflectir.

Temos todos um cinema metido na cabeça, disse Manuel Gusmão em entrevista ao suplemento Ípsilon, do jornal Público. O que esta poesia revela – e Teatros do Mundo é exemplar desse modo de configuração –, é um olhar que, debruçado sobre a elementaridade do real, o transfigura e planifica como câmara pertinaz e inquieta; nos dá a ler o indefinido, o inesperado, ira e júbilo conjugados. A missão do poeta – se é que cabe ao poeta carregar tanto peso em frágeis ombros –, como a do realizador (e penso em Bergman, ou em algumas sequências de Rossellini) é a de encontrar explicações para os signos obscuros que o real oculta – e transformá-los nesse puro possível de que nos fala João Barrento. Ou, revoluteando, ainda segundo João Barrento, a poesia é uma pujança sem poder, mas com ouvintes, com leitores, e essa agitação interior que o poema provoca (que a poesia de Manuel Gusmão estimula, dado que cintilante e lúcida), esse responsável acto de ler, através do apodíctico discurso de Gusmão, adquire uma ampla ressonância, uma singular qualidade. Com ele, quando o lemos, estamos a intensificar o nosso modo de aderir aos conflitos do real possível, a criar imagens sobre o mundo, a materializar, pelos enigmas da linguagem, o que queremos que exista e se revele e, nessas traves mestras das palavras, nos poemas que as inscrevem poderosa e sem deslace, na sua porosidade essencial, encontramos esparsos rumores dos seus referentes próximos, as múltiplas geografias dos percursos da língua e dos seus modos de agir sobre o real: Carlos de Oliveira, Herberto Helder, algum Ruy Belo, João Miguel Fernandes Jorge, Maria Velho da Costa, também Camões, Fernão Lopes, outras vozes maiores de um polifónico, libertário coro. Esse enlace das palavras altas, dos dias solares e levantados, próximas da natureza do ser, belíssimos arquétipos da arte de criar conexões entre a memória de um tempo de silêncios, no qual não impera o pessimismo da desesperança, e a afirmação do devir – palavras, signos, ocultas vibrações – numa ressonante inventariação que ajuda o homem, o comum dos homens, a erguer-se do rasteiro chão, das teias a que os poderes, por arrasto e convicção ideológica, o querem submeter. A palavra de Gusmão, as imagens que nela ecoam e se ampliam, ajuda a libertar-nos desse peso, dessa canga, pela matriz revolta e humanista que a atravessa, serve, outrossim, para definir as coordenadas em que vogamos, derivando, para Tomar a Palavra: Escrever o Tempo. – Esta é, agora, a pequena pátria/minha amada. Ao sul./Uma pátria feita de terra extensa/como o mar longe/e ali ao lado. As marés da terra/cantam no coral do canto./No canto dos homens inteiros/e incompletos: as ondas/da terra branca e vermelha./Esta é a terra.../que nos come até ao osso./E nem a história do nosso sangue/durante séculos/chega para lhe matar a sede.

Libertar o homem, dado que a poesia de Manuel Gusmão se liberta, nos liberta, dos círculos do Eu e leva-nos, diria: convoca-nos para a pluralidade de um Nós colectivo – na consonância que o poema em sortilégio opera, ou pode lateralmente produzir, mesmo quando traça o itinerário dos dias cruéis. Daí brota o seu vigor, a sua luz.

Sobre a actualidade do marxismo, essa indispensável bagagem filosófica e humanista para os dias putrefactos com que, de novo, nos tentam cercar, diz-nos Gusmão: Espinosa, designadamente na leitura que Deleuze faz dele, põe a questão de saber como é possível transformar um colectivo de humanos não num conjunto de escravos, mas numa assembleia de homens livres. Esse é o verdadeiro problema, que está inscrito na história humana e ao qual o marximo procura decisivamente responder e tornar mesmo na poesia uma questão prática. 1

A grande poesia, esta de Manuel Gusmão em particular, nas suas derivantes Migrações do Fogo, a esse patamar supremo da nossa humanidade nos tenta conduzir: bússola, bagagem elementar para que possamos ascender, finalmente, a essa assembleia de homens livres. Mesmo quando nos querem pequenos, tolhidos e servis, Sob as tempestades de neve nós continuamos inventando os movimentos do tempo, seus íntimos rumores, sua imparável viagem.

1 Ípsilon, 26/6/2008




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